No dia seguinte a colheita, Genesis acordou com aquela sensação de que tudo que ocorrera no dia anterior não havia passado de um sonho ruim; e que logo ela retornaria para sua rotina habitual, acordando cedo pela manhã para ir para a escola, ajudando sua irmã Ira no que ela precisasse, ou mesmo vagando sem rumo pelo Distrito 12 saudando as velhas memórias que tinha de quando brincava naquelas ruas com Zell. Mas havia algo diferente no lugar em que acordara. O cheiro era límpido e bom, diferente do odor de fuligem que era incontestavelmente uma característica predominante de seu Distrito; os lençóis sob seu corpo eram finos e sedosos e a própria cama transmitia um conforto jamais sentido por ela antes. Para completar, o leito em que se encontrava balançava-se descompassadamente, como se fosse um berço ou coisa do gênero. Poucos segundos depois, quando realmente acordou para a realidade, percebeu que era a ideia de estar em casa que se passara por uma ilusão,e que ela realmente estava dentro dos aposentos de tributo, viajando de trem em direção à capital – o que explicava o leve balançar não só da cama, mas de todo o cômodo – para competir nos Jogos Vorazes.
Saltou da cama no mesmo instante em que chegara a essa constatação, como se o colchão tivesse lhe dado um choque. Olhou em torno de si apenas para ter certeza de que tudo se encontrava da mesma forma que lembrava na noite anterior. Observou inclusive a si mesma, checando para ver se nada havia sido modificado em seu corpo desde que caíra no sono – e sim, não lembrava de como havia conseguido adormecer, tamanha era a sua preocupação com o fato de estar ali em primeiro lugar – afinal, se bem recordava as exibições dos jogos pela TV, os estilistas da capital gostavam de aplicar algumas alterações no corpo dos tributos lhe conferindo uma aparência completamente estranha. Novamente a imagem de Zell lhe invadiu o pensamento, desta vez um pouco modificada pelos cabelos pintados de amarelo gema de ovo e arrepiados num moicano que mais parecia a crista de um galo. Diante de toda aquela observância, a única conclusão a qual chegara era a de que necessitava de um banho urgentemente. Decidiu, por fim, engolir o orgulho e aproveitar-se ao menos da “hospitalidade” oferecida pelos organizadores daquele reality show, e seguiu até o banheiro para um longo e merecido banho morno.
Após o banho vestiu-se, não com suas roupas antigas, mas com um conjunto de roupas novas que encontrou em uma das inúmeras gavetas que haviam por ali. Porém, tomou o cuidado de não usar qualquer peça de vestuário, optando por aquelas mais simples e menos glamourosas, o que foi de fato um desafio uma vez que a maioria das roupas possuía uma conotação muito mais chamativa do que de conforto realmente. Assim que terminou de se vestir, foi o tempo da camareira anunciar que havia lhe trazido o café da manhã, que não era nada menos que um banquete em comparação com a miséria com a qual já estava acostumada. Era difícil impedir seus olhos de brilharem ao ver tanta variedade e fartura, e mais ainda de fazer suas glândulas pararem de salivar para que ela tivesse ao menos a chance de agradecer sem antes morrer afogada. Em pouquíssimo tempo conseguiu esvaziar a maior quantidade de pratos que encontrou pela frente, e havia sido bom a camareira ter se retirado antes que ela também acabasse sendo vítima de canibalismo. Foi uma sorte Genesis não ter precisado de um banho depois de ter praticamente devorado o café da manhã.
Após o café, Genesis seguiu até a salinha entre os aposentos dos dois tributos e ficou por ali observando os quadros daqueles que lhe antecederam como candidatos àquele jogo. Poucos ali possuíam a insígnia de campeões. De fato, era possível contar nos dedos das mãos apenas a quantidade de vencedores do Distrito 12, e aquela estatística a preocupava significativamente. No entanto, não deixou que aquela preocupação transparecesse em sua expressão uma vez que poucos minutos depois, seu companheiro tributo havia chegado até a sala comum, lhe cumprimentado, e sentado ali em silêncio, aguardando até os momentos finais daquela longa viagem de trem que parecia não mais ter fim. A ansiedade para o que viria em seguira era uma constante, porém o receio era também o seu companheiro, e ambos lutavam dentro da mente de Genesis para concluir qual deles predominaria. Ao mesmo tempo que ela estava curiosa para saber o que aconteceria no momento em que chegasse a capital, também se preocupava com esse futuro de incertezas, e cada vez mais a estadia naquele trem dos sonhos parecia ser bem vinda a nunca acabar.
Porém, foi questão de poucas horas para que ela tivesse certeza de seu fim, e pouco antes do meio dia o trem do Distrito 12 acabava de chegava à estação da Capital. Genesis mal tivera a chance de observar direito a arquitetura das edificações da grande capital de Panem, pois fora rapidamente conduzida até um automóvel do lado de fora da estação, e levada o mais rápido ainda para o que eles chamaram de “Centro de Transformação”. Lá, ela foi deixada em um cômodo separado de seu companheiro de Distrito e, antes que tivesse alguma chance de respirar e entender o que estava acontecendo, o cômodo fora tomado por uma dezena de outras pessoas desconhecidas e vestidas de maneira aberrante que começaram a fazer conjecturas a respeito de seus cabelos e unhas mal cuidados, além de reclamar das poucas horas que teriam para fazer um trabalho digno sobre ela. Enquanto isso, Genesis os observava com temor estampado em seu olhar, já tendo um pressentimento ruim a respeito do que eles pretendiam fazer com relação a sua aparência. No entanto, sua deficiência a impedia completamente de fazer qualquer tipo de reclamação.
A suposta “transformação” que se esperava que fosse feita no centro de mesmo nome correspondia a uma verdadeira cirurgia de beleza nos tributos que chegavam até a capital, e para aqueles que vinham dos distritos mais miseráveis do país, chegava a ser quase uma cirurgia plástica. Genesis não parecia mais ser dona do próprio corpo, uma vez que todas aquelas pessoas o manipulavam ao seu bel prazer, para conseguir realizar toda limpeza e arrumação que se esperava. Deram-lhe um bom banho, melhor até do que aquele que dera em si mesma dentro do trem, cortaram e descoloriram ainda mais o seu cabelo, bem como sua pele, que adquiriu um tom ainda mais pálido do que o que já tinha. Ao se olhar no espelho depois daquela primeira etapa, Genesis mal se reconheceu como sendo aquela mesma garota que havia saído do Distrito 12 no dia anterior. Possuía o mesmo formato, é claro, mas parecia uma versão de si mesma pronta para ser colorida pelas mãos de algum artista. Uma tela em branco. Mal sabia ela que a intensão do seu estilista era a de que ficasse mesmo sem cor.
A seguir, fora mandada para trás de um imenso biombo, onde sua estilista lhe indicou uma série de peças de roupa estranhas que pareciam até um tanto improváveis de existir, não fosse o fato de estarem ali bem na sua frente para lhe provar o contrário. Fora vestida com um elegante vestido longo negro e cheio de babados, mas que tinha como diferencial o fato de que cada uma de suas pontas se encerrava numa nuvem de fumaça negra, como se o próprio vestido fosse a qualquer momento se dissolver daquela forma. Diante de todas as opções de roupas estranhas que os estilistas pudessem lhe indicar, até que aquele vestido não havia sido uma escolha tão exótica quanto ela esperava, mas ainda havia algo nele que lhe incomodava. O decote pronunciado em seu busto a fazia se encolher ainda mais para que ninguém o notasse, ou exatamente o oposto, para que ninguém percebesse que ela não tinha motivos para ter que usá-lo. No topo de sua cabeça, fora posto também um chapéu em forma de nuvem branca que misturou-se perfeitamente a cor dos seus cabelos descoloridos, fazendo parecer que ele fazia parte do seu penteado. Como toque final, uma maquiagem negra fora feita para contornar seus olhos e lábios, oferecendo mais esse contraste para a cor pálida de sua pele, cabelos e até olhos.
Finalmente, quando parecia que toda a transformação havia acabado, Genesis veio notar a passagem do tempo e perceber que faltava pouco para o horário dos desfiles. Sem perder mais tempo, ela e o outro tributo, Seth Goldriver, finalmente se encontraram e foram conduzidos até o andar inferior do edifício do Centro de Transformação, onde havia um grande estábulo com uma série de carruagens enfileiradas. A deles seria a última da fila, obviamente por se tratarem dos tributos do último Distrito da contagem, o 12. Enquanto caminhavam sobre a plataforma na direção da sua carruagem, os estilistas davam os últimos retoques, puxando uma prega de vestido aqui e retocando um delineador acolá, e permaneceram junto com os tributos até o último minuto, antes de embarcarem na carruagem. Auxiliada por seu companheiro Seth, Genesis entrou na carruagem e aguardou que o grupo de quatro cavalos que a puxava fossem incitados a seguir os outros logo a frente.
Era simplesmente absurdo ver como eles seguiam exatamente o mesmo caminho em linha reta que as outras carruagens sem o auxílio de um cavaleiro manobrando as rédeas dos cavalos, mas Genesis tentou não parecer muito deslumbrada. Sua tentativa só durou até que as carruagens ganhassem as ruas da Capital, e ela finalmente tivesse a chance de ver de perto sua majestade, repleta de edifícios altos e luzes coloridas, assim como sua gente, que usava roupas tão ou até mais chamativas que aquelas trajadas pelos tributos que ali desfilavam. Ela podia ouvir gritos, uivos, vaias, flashes sendo disparados, gritos de sorte para alguns tributos e, porque não dizer, até apostas para aqueles que iriam perder as primeiras disputas. Um arrepio percorreu a espinha da jovem Malakian, mas ela tentou afastar por enquanto qualquer pensamento que lhe remetesse ao motivo de estar ali em primeiro lugar. Todos festejavam a sua entrada para aquele jogo, mas esqueciam-se que se tratava de um jogo de sobrevivência ou morte, a morte de adolescentes até então indefesos. “Adolescentes de muita má sorte” ela pensou.
O desfile transcorreu por cerca de vinte minutos e durante esse meio tempo, Genesis tentou se manter neutra com relação a sua participação como atração nele. Não queria parecer desgostosa, afinal sabia que popularidade era algo que de certo modo influenciava na sua sobrevivência, mas não conseguia se mostrar satisfeita, nem muito menos festejar com o restante do povo a sua presença ali. Por isso, limitou-se apenas a observar e se permitir ser observada até chegarem ao destino esperado por todos ali: o Círculo da Cidade. Na sua chegada, uma torrente de disparos de flashes pode ser ouvida de uma só vez, mas ela tentou ignorar a súbita fama que havia lhe assolado. Afastou uma mexa de cabelo enquanto tentava encontrar seus pés sob a nuvem de fumaça negra de seu vestido, para que conseguisse apoiá-los direito no degrau da carruagem. Seth ajudou-a a descer e juntos seguiram até o marco do início dos jogos daquele ano.